sexta-feira, 16 de novembro de 2007

POLÍTICA E LINGUAGEM: A CULTURA DO CINISMO E DO UTILITARISMO.



“O supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser”
Sócrates

“Acuse-os do que você faz! Xingue-os do que você é!”
Lênin



Os maiores problemas dos péssimos discursos políticos estão focados na estrutura dos próprios discursos, um pouco menos que em suas "iluminadas" justificativas. Este fenômeno é verificável não só na política contemporânea, mas desde os sofistas, que através de recursos lingüísticos associados à persuasão psicológica e floreios verbais, induziam na mentalidade do interlocutor não mais que uma mera interpretação da realidade, através de uma vontade lapidada e introjetada pelo próprio sofista. Em suma, conseguiam reduzir a verdade a uma mera utilidade.

A Torre de Babel, segundo o Antigo Testamento, foi construída na Babilônia por pretensiosos fiéis que ousaram tentar atingir os céus. Como castigo pela soberba e falta de fé, Deus fez cada qual falar uma língua, impossibilitando dessa forma que se entendessem. Assim, interrompeu-se a obra por falta de acordo.

A Torre da Bíblia serve de símbolo para interpretarmos as ações político-lingüísticas dos cidadãos atuais. Todos buscam o alto dos céus em suas dulcíssimas intenções, a diferença é que cada qual, na maioria dos casos, fala exatamente o mesmo idioma entre si. Ou seja, Babel já foi transcendida. Agora, os homens em prol de suas finalidades, a falar a mesma língua, se confundiram de vez.

Às vezes falam da mesma coisa com termos distintos. Outras vezes falam com os mesmos termos sobre coisas distintas. E mais, chegam a falar sobre as mesmas coisas com os mesmos termos, mas cada qual com seus interesses específicos e particulares.

Só existe uma característica social mais deplorável que a mentira pura e simples. É o cinismo político! Para um cínico a mentira é elevada ao quadrado, e, se preciso, ao infinito. O cínico mente que não mentiu; mente que o mentiroso é o outro. E o pior: mente que o cínico é o outro (ver epígrafe de Lênin)! Tal é o poder da linguagem.

Todavia, é óbvio que a linguagem não é um monstro. É um bem. Pode ser a maior causa dos desentendimentos, mas é a única causa possível dos entendimentos! O que resta é saber direcioná-la. Assim como a noção de liberdade, bem e amor na visão de Santo Agostinho. Para o filósofo santo, o amor não é substancialmente bom. Bom é o ato que faz o movimento a um amor divino.

Sócrates afirma que o discurso deve ser tal qual um corpo vivo em sua coerência conjunta. Cada frase deve precisar-se uma a outra assim como o coração e o cérebro se precisam em um corpo humano. Apontar a dessincronia estrutural do discurso é a melhor forma de não se dar margens ao cinismo oratório, eficaz maneira de prová-lo e condená-lo; pois é nas particularidades das entrelinhas (nos órgãos desconexos) que se descobre a contradição de um discurso, maquiado e alegorizado no geral como coerente.
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Na contemporaneidade sofre-se de uma mania política. A cultura do bem-estarismo. Uma prótese neo-sofista do utilitarismo, onde tudo é justificado sob a alegação “supra-bondosa” de um bem-estar geral.

A primeira forma de utilitarismo alertado pelo filósofo canadense Charles Taylor é o conseqüencialismo. Este nada mais é que o ato de se colocar as finalidades acima de todas as coisas, anulando-se a legitimidade dos meios; acima até mesmo da universalidade ética. Ironicamente, a mesma e única ética que garante a liberdade política do conseqüencialista dizer o que ele pensa. Logo, em última análise, ser um conseqüencialista é não se importar com o direito de ser um conseqüencialista. É claro que como homens públicos e bem-informados, os conseqüencialistas sabem do risco. Por cinismo, fingem não saber.

A segunda forma de utilitarismo é o próprio pressuposto utilitário. Para Taylor o pressuposto utilitário é uma doença que leva o mesmo gen do conseqüencialismo.

Em nome de uma suposta convenção geral, de uma “felicidade coletiva”, esse pressuposto ignora o fato de que é impossível, dada a força dos diferentes contextos, dos interesses individuais, dizer o que é bom para todos.

Um exemplo é o caso da Inglaterra, que em nome do bem-estarismo dietético da população proibiu a veiculação de comerciais de alguns produtos, dentre eles, o hambúrguer. As “conseqüências” são amplas. As produtoras de vídeos comerciais perderão boa parcela dos clientes. Os fabricantes dos produtos tenderão a fracassar comercialmente. O imaginário popular, doutrinado no medo de um ‘monstruoso’ hambúrguer, ganhará mais uma historinha mentirosa e politicamente correta.

O terceiro sintoma do utilitarismo é o atomismo. Este, calcado em raízes filosóficas, visa exclusivamente os bens individuais. O raciocínio é simples. O todo é formado pelas partes. Sem partes não há todo. Assim, a sociedade é formada pelos homens. Sem o bem-viver previamente estabelecido de cada homem a sociedade se arruína, pois o homem é o “átomo” da sociedade.

De acordo com Taylor, entra-se aí no seguinte problema. Os indivíduos logicamente contribuem com o pensamento de uma determinada nação ou região. Mas a estrutura de tal pensamento existe imersa em um “pano de fundo” social, recheado de significados e termos verbais construídos por todo um processo cultural coletivo.

Enfim, o atomismo faria pouco sentido numa nação ou região em que mal se sabe o que significa o termo atomismo, pois só se entende em profundidade a idéia de um termo depois de conhecer o mesmo. O mesmo termo faria menos sentido ainda numa sociedade onde não existe autonomia, como em partes do Oriente Médio, onde homens-bombas se dispõem a se anular por inteiro em prol de uma salvação da humanidade em sua mente. Ou numa cultura panteísta, onde Deus, homem e natureza significam a mesmíssima coisa.

Podem dizer, como pretensa objeção, que palavras expressam pensamentos inatos universais. Exemplo: a idéia de metafísica existia antes da criação do termo ‘metafísica’. Mas uma coisa é certa. Toda a filosofia metafísica que se desenvolveu após o termo não seria a mesma sem a palavra - síntese simbólica de uma idéia. E isso basta para dizer que todo termo influencia na consciência da existência plena do seu significado.

Toda essa rede de significados da sociedade não foi feita de uma hora para outra. Foi fruto de um longo processo histórico, no qual é impossível apontar um só feitor. Foi preciso uma aceitação natural e coletiva. Por isso o fracasso do esperanto ao pretender se tornar uma língua universal, ao passo que foi o inglês que se tornou, sem pretensões ao nascer, a mais falada universalmente.

Além da crítica lingüística de Taylor, o atomismo pode ser posto em xeque do ponto de vista moral. Para Immanuel Kant não basta fazer o bem a outro indivíduo pela simples consciência legal, mas sim, na esfera da consciência ética, nos caminhos da virtude, em seu mérito. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, afirma também que a busca pela felicidade individual deve se dar juntamente a uma conduta virtuosa.

Pela perspectiva espiritual do próprio Taylor, o atomismo nada mais é que uma confluência de interesses mútuos. Portanto, fatores como a praça pública, a rua asfaltada e a polícia, não estão no rol dos “bens irredutivelmente sociais”, simplesmente porque beneficiam indivíduos, pois estes bens, em verdade, são abstratos.
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Fica transparente, assim, que os bens irredutíveis não estão nas coisas nem nos direitos às coisas, como querem os utilitaristas em todos seus tipos de utilitarismo.

E visto que na categoria das coisas: do asfalto, da rede de esgoto, das proibições de propagandas, dos outdoors, das institucionalizações sedentas pelo dinheiro público, do respeito ao próximo-individual previsto por lei, das Organizações Não Governamentais dependentes do governo, do discurso político vazio e inválido, do foro privilegiado, enfim, do sórdido mundo dos decretos, não se encontram os bens irredutivelmente comuns, onde se encontrariam estes então?

Estão arraigados nas idéias, na tendência histórica, na música, na literatura, no cinema, no folclore, na cosmovisão, na religiosidade de um povo.

No filme Balzac e a Costureirinha Chinesa, em pleno campo de reeducação da ditadura comunista maoísta, dois jovens decidem ler aos companheiros analfabetos, na calada da noite e escondidos dos soldados, romances de Gogol, Dostoievski, Flaubert e Balzac. O filme mostra que a absorção da leitura dos reeducandos, em sentimentos de exaltação da beleza e da liberdade, teve um efeito paulatino nas suas concepções de vida e de mundo. Descoberta que gerou angústia nos exilados, impulsionando-os a fugir daquela rotina impositiva.

As verdadeiras conquistas da humanidade se deram pela consolidação de um patrimônio cultural, intelectual e moral, na preocupação de se desenvolver projetos em longo prazo que atingissem a causa dos problemas, e não em permanecer reparando os eternos efeitos. Pois os valores não devem ser conseqüência das leis, as leis devem ser conseqüência dos valores.

Alexis de Tocqueville vai mais além. Ele assegura que o aperfeiçoamento da alma, além de melhorar a própria alma, garante a melhoria do corpo. Com a elevação da alma pode-se conduzir melhor os ganhos materiais. Em vista disso, Tocqueville afirma em síntese perfeita : “o amor excessivo ao bem estar prejudica o bem estar”.

Agir de acordo com um ideal não significa ir loucamente atrás de uma utopia, mas sim, em absorver as fórmulas deste ideal (moldável) e aplicá-las em doses homeopáticas, solucionando fase por fase, numa socrática humildade filosófica, algumas chagas. Como bem disse Ortega Y Gasset:
“Um tempo que satisfez seu desejo, seu ideal, é que já não deseja nada mais, que se lhe secou a fonte do desejar. Isto é, que a famosa plenitude é em realidade uma conclusão. Há séculos que por não saber renovar seus desejos morrem de satisfação, como morre o zangão afortunado depois do vôo nupcial”.

Gasset em seguida ironiza a expressão “cultura moderna”, uma vez que o tempo não é uma realidade cabível nas fronteiras de uma só época. É movimento. Nunca se pára de conquistar. O termo “moderno” é, pois, um cachorro que corre atrás do rabo.
As vitórias são dadas na movimentação histórica das idéias, cuja arma, vejam só, é a própria linguagem (bem direcionada e válida).

Só quem pode exercer essa linguagem é o homem. E só quem a usará de modo prudente é o homem autônomo, que luta a todo o momento não só pela sua liberdade, mas pela liberdade social. Pois a liberdade não é um privilégio de quem nasce em pureza de condições para exercê-la, como sonha o marxismo, até porque nunca existirá uma pureza de condições. A liberdade é fruto de um suor intenso, de uma dialética interna e externa. Não existe quem nasça com a liberdade plena. Isso seria absurdamente contraditório, pois o que exige a condição de existência de tal liberdade é o próprio ambiente de lutas que serão travadas para alcançá-la, e não um mundo bucólico e pacato à volta do sujeito. Aquele que é livre o é porque correu o risco.

Além disso, não existe autonomia sem o alcance da noção ética. A autonomia é o motor de uma batalha espiritual. Todo o pensamento que pretende impor o que é o “certo” através de um projeto absoluto de sociedade, ao invés de dizer que o certo é o indivíduo quem busca, é totalitário em suas bases.

A cultura do cinismo autentica a do utilitarismo, e assim vice-versa. Portanto, elas devem ser combatidas pelos mesmos meios aos quais estas foram elevadas a mais alta hierarquia de verdades óbvias. No campo das idéias, no espírito do tempo. Pois pessoas e pessoas vivem e morrem nesse equívoco secular. E assim também passam seus herdeiros de gerações, a criar na psique um universo meramente conceitual, assustadoramente fantasioso.

Vítor Meireles

TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Editora Loyola. São Paulo, 2000.

PLATÃO. A República. Editora Martin Claret, 2004.

PLATÃO. Fedro. Editora Martin Claret, 2004.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Os pensadores. Abril Cultural, 1979.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. Ed. Martins Fontes. São Paulo, 2002.

AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante - São Paulo. Paulus, 2002.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. Trad. e revisão Maria Arsênio da Silva – São Paulo: CHED, 1980.

TOCQUEVILLE, Alexis de, 1805 – 1859. Da Democracia na América. Trad. e condensado por José Lívio Dantas – Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed.,1998.

ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Tradução Herrera Filho. Ed. Ridendo Castigat Mores.

Filme.

BALZAC E A COSTUREIRINHA CHINESA. Direção: Dai Sijie. Roteiro: Dai Sijie e Nadine Perront, baseado em livro escrito por Dai Sijie. 2002.